sexta-feira , 29 março 2024
Sem categoria

IstoÉ/Dinheiro mostra como BNDES virou alvo de críticas e pode resultar em CPI

Veja reportagem publicada na revista IstoÉ/Dinheiro sobre o BNDES:

 

O maestro desafinado do BNDES

Com apostas polêmicas e um histórico de prejuízos bilionários, a gestão de Luciano Coutinho à frente do BNDES vira alvo de críticas e pode resultar em CPI no Congresso

 

Episódio 1: São Paulo, 3 de setembro de 2009. Na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o governo federal anuncia a modelagem financeira do polêmico projeto do trem-bala, que ligará Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro. Na época, foi anunciado que o consórcio vencedor teria à disposição R$ 20,7 bilhões em empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a juros reduzidos, o equivalente a 60% do custo da obra. A oferta de financiamento, no modelo “de pai para filho”, não foi suficiente para atrair investidores. As três tentativas de leilão, em 2010 e 2011, fracassaram.

Episódio 2: Rio de Janeiro, 28 de junho de 2011. O BNDES divulga um comunicado no qual disponibilizava R$ 4,5 bilhões dos R$ 5,6 bilhões necessários para viabilizar uma fusão entre o Pão de Açúcar e as operações do Carrefour no Brasil. Como se sabe, o Casino, sócio francês do empresário Abilio Diniz no Grupo Pão de Açúcar, nunca concordou com a ideia. Catorze dias depois de muita polêmica, o banco desistiu da operação natimorta.

Nas duas ocasiões descritas, o BNDES recebeu inúmeras críticas. Houve questionamentos sobre o interesse social das propostas, o benefício econômico que elas proporcionariam ao País e o custo para os cofres públicos. Talvez por pura sorte do BNDES, ou pelo bom senso dos investidores envolvidos, as duas iniciativas naufragaram – ainda que temporariamente, no caso do trem-bala. Há, no entanto, uma série de episódios controversos que tiveram um desfecho diferente. O mais recente é a derrocada das empresas X, de Eike Batista, nas quais o banco tinha ao menos R$ 10,4 bilhões comprometidos.

Todos eles passam pela batuta do presidente Luciano Coutinho, o maestro de decisões polêmicas, que vão da escolha de “empresas campeãs”, passam por companhias que faliram e culminam agora com o Grupo EBX. O professor Coutinho, como é chamado por seus colegas da Unicamp, sempre se notabilizou por estudos ligados a políticas industriais. Além disso, o jeito discreto, o estilo disciplinado e a sua fala pausada, em tese, se encaixam perfeitamente no perfil esperado de um presidente do maior banco de fomento da América Latina, que encerrou 2012 com R$ 715,5 bilhões em ativos. É uma instituição que concedeu R$ 505 bilhões em empréstimos, segundo o balanço mais recente divulgado pelo Banco Central.

Quem já teve contato com o BNDES enaltece o rigor técnico e as exigências impostas na hora de conceder um empréstimo. Tal metodologia ajuda a explicar o baixo índice de inadimplência de suas operações, inferior a 1%. Em entrevista à DINHEIRO, no mês passado, o presidente da Saint-Gobain no Brasil, Benoit d’Iribarne, afirmou que “a instituição é excelente para as empresas”, mas reclamou do excesso de burocracia. “Estamos aqui há 75 anos e ainda nos pedem uma montanha de papéis.” Por isso, com tantos procedimentos rigorosos até mesmo com clientes de longa data, para muita gente anda difícil compreender o motivo que levou Coutinho e sua equipe a abraçar o Grupo EBX, de Eike Batista, que sempre atraiu investidores através de promessas de resultados futuros – a maioria, diga-se, nunca foi cumprida.

Como se sabe, no início do mês, Eike anunciou a possível suspensão, em 2014, da produção do único poço da petrolífera OGX que está em operação, derrubando drasticamente as ações de várias empresas do grupo. Uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, no dia 15 de julho, mostrou ainda que o BNDES adiou a cobrança de contratos com o empresário. Outro acordo prorrogou a exigência de desempenho técnico da Usina Termelétrica Porto do Pecém, no Ceará, que está sendo construída por meio de uma parceria entre a EDP e a MPX Energia, do Grupo EBX. O projeto de R$ 3 bilhões tem quase 50% de financiamento do BNDES.

As dificuldades pelas quais o grupo fizeram Eike solicitar, na semana passada, o adiamento da cobrança de um empréstimo-ponte, de R$ 400 milhões, feito em 2011 para a companhia OSX, de construção naval, que venceria em agosto. Um relatório assinado pelo economista César Mattos, da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, mostra que os empréstimos ao empresário somam R$ 11,5 bilhões e possuem garantias consideradas frágeis, como as ações das próprias empresas. O documento, que norteia pedidos da formação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a gestão de Coutinho no BNDES, questiona se haveria necessidade real de financiar as companhias de um indivíduo que já foi o homem mais rico do Brasil e o sétimo mais rico do mundo até o ano passado.

Em nota, o BNDES informa que o valor total das operações contratadas com o Grupo EBX é de R$ 10,4 bilhões, sendo que nem tudo foi liberado. Quanto à queda no valor das ações, a instituição refuta a ideia de prejuízo, pois “o resultado final de cada investimento só pode ser aferido com a efetiva venda dos ativos, o que não ocorreu”. As empresas X não são as únicas eleitas pelo BNDES que fracassaram. Em fevereiro deste ano, a BNDES Participações (BNDESPar), subsidária que faz participação direta em empresas consideradas eficientes, confirmou a baixa contábil de R$ 657 milhões relativos à sua participação na LBR, dona das marcas Parmalat e Bom Gosto, em recuperação judicial.

O banco contribuiu com R$ 700 milhões para a criação da gigante do setor de leite, em 2011, passando a deter 30% de seu capital. A BNDESPar também investiu em outras empresas que passaram por sérias dificuldades financeiras, como a Indústria de Alimentos Nilza, o curtume Braspelco e o frigorífico Independência. A prática de nomear campeãs nacionais, aliás, coincide com a entrada de Coutinho na presidência do banco em 2007. Essa política, com benefícios duvidosos para a sociedade, pode acontecer basicamente de duas formas: via financiamentos bilionários a juros subsidiados, ou por participação direta via BNDESPar. Há muitos casos em que as duas coisas acontecem ao mesmo tempo, como na empresa de celulose Fibria.

Pouco transparente na hora de explicar as suas escolhas, a BNDESPar tem uma enorme concentração em mineração, energia, óleo e gás, alimentos e papel e celulose, setores que correspondem a cerca de 90% das ações em poder da subsidiária. A concentração, por si só, não seria um problema se a aposta nesses setores se comprovasse bem-sucedida ao longo dos anos. Mas não é o que está acontecendo, como mostra um estudo dos pesquisadores Sergio Lazzarini, do Insper; Aldo Musacchio, da Harvard Business School; e Claudia Bruschi, da Fundação Getulio Vargas, de São Paulo. Foram analisados 47 papéis que fizeram parte da carteira da BNDESPar no período de 2004 a 2012.

O estudo, portanto, não contempla o tombo do mercado de ações neste ano – desde janeiro, o Índice Bovespa acumula queda de cerca de 20%. Do total de papéis analisados, 30 tiveram um rendimento médio mensal inferior ao do Índice Bovespa, e 22 apresentaram queda no valor de mercado (leia quadro “Aposta errada?”). “Uma vez que o BNDES utiliza recursos públicos, não está claro quais são os benefícios de sua política de investimentos em ações”, concluem os pesquisadores. No ano passado, a BNDESPar teve queda no lucro de 93%, de R$ 4,3 bilhões para R$ 300 milhões. A estratégia de patrocinar “campeãs nacionais”, no entanto, parece estar com os dias contados.

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, no mês de abril, Coutinho disse que “a promoção da competitividade de grandes empresas de expressão internacional é uma agenda que foi concluída”. E emendou: “É uma política que tinha méritos e chegou até onde poderia ir”, afirmou Coutinho, praticamente assinando um recibo de que é preciso corrigir a rota que havia tomado até aqui. Vale lembrar que o caminho escolhido ainda dificulta o acesso de pequenas empresas ao dinheiro barato do banco estatal. Embora tenha aumentado o capital para esse segmento, 63% dos desembolsos estão nas mãos de poucos grandes grupos.

“Os pequenos empreendedores ainda são minoria na carteira do banco”, diz Bruno Caetano, diretor-superintentendente do Sebrae- SP. “A burocracia é tão grande quanto a de um banco comercial.” Outra crítica que é feita ao BNDES envolve empréstimos subsidiados aos chamados “países amigos”, como Argentina, Venezuela, Cuba e nações africanas. “Qual é a razão econômica e social para o Brasil?”, indaga Lazzarini, do Insper. “Não faz nenhum sentido.” Em 2012, os desembolsos do BNDES para financiamentos em outros países somaram US$ 2,2 bilhões. Angola foi o principal destino dos recursos, com US$ 654 milhões para obras de infraestrutura, tocadas por grandes construtoras brasileiras.

Em segundo lugar aparecem os Estados Unidos, com US$ 250 milhões em desembolsos, pouco à frente da Argentina (US$ 245 milhões) e da República Dominicana (US$ 237 milhões). Até mesmo Cuba, dos irmãos Castro, recebeu US$ 220 milhões, além de possuir uma linha de financiamento para a compra de alimentos de US$ 400 milhões e um financiamento de 71% da obra do Porto de Mariel, situada a 45 quilômetros de Havana, estimada em US$ 957 milhões. Com receio de não receber o pagamento do empréstimo, o governo avalia abater a dívida por meio de serviços de médicos cubanos no Brasil. Em nota, o BNDES afirma que “não financia países, mas sim exportações de bens e serviços de engenharia e construção produzidos no Brasil, gerando emprego e renda no País.”

O MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO

As escolhas, porém, têm um custo alto, tanto para o contribuinte quanto para as contas públicas. Essas operações bilionárias significam, na prática, prejuízo aos cofres da União. Tal movimento tem se intensificado nos últimos anos diante da ânsia do governo em turbinar a capacidade dos bancos públicos de estimular a economia. Graças aos sucessivos aumentos de capital promovidos nessas instituições com recursos do Tesouro Nacional, o estoque da dívida delas passou de R$ 14 bilhões, ou 0,5% do PIB em 2007, para R$ 406 bilhões em 2012, ou 9,2% do PIB. Cerca de 90% desse valor refere-se ao BNDES.

“Estamos caminhando rapidamente para que a dívida dos bancos públicos represente mais de 10% do PIB”, diz o economista Mansueto Almeida, especialista em contas públicas. Embora, tecnicamente, os empréstimos para os bancos não pesem na dívida líquida da União, essas operações aumentam a sua dívida bruta. Isso porque o BNDES empresta dinheiro a um juro inferior àquele pago pelo Tesouro para angariar recursos no mercado. A diferença entre as taxas de captação do Tesouro (a base é a Selic, em 8,5%) e as de empréstimo do BNDES (a base é a TJLP, em 5%) é bancada com dinheiro do contribuinte. Considerando que o volume de dívida do BNDES junto ao Tesouro é hoje de R$ 375 bilhões, o custo anual dessa operação é de R$ 18 bilhões, estima Almeida.

Os gastos questionáveis não param por aí. Em linhas especiais os juros ficam abaixo do mínimo de 5% da TJLP exigido pelo banco. Esse é o caso, por exemplo, do Programa de Sustentação do Investimento (PSI), que, no primeiro semestre de 2013, concedeu empréstimos com taxas de 3% ao ano. Incentivar a compra de bens de capital é uma decisão meritória, mas nem por isso deixa de gerar despesas aos cofres públicos. Nesse caso, o Tesouro complementa o custo para manter os juros baixos em até R$ 4 bilhões por ano, calcula Almeida. O BNDES, por sua vez, se defende com o argumento de que não “necessariamente” as operações entre o Tesouro e o banco dão prejuízo. “A diferença pode ser compensada e até revertida com os pagamentos tributários do BNDES, com o aumento de investimentos e do PIB, viabilizados por financiamentos do banco, que geram mais arrecadação – chamado efeito multiplicador”, afirma o comunicado enviado à DINHEIRO.

Boa parte da expansão do endividamento do banco estatal de fomento também se explica pela chamada contabilidade criativa, expediente usado pelo governo federal em 2012 para cumprir a meta de superávit primário (diferença entre receitas e despesas, exceto gastos para pagamento dos juros). Por meio desse malabarismo de números, o Tesouro capta dinheiro e o repassa como empréstimo aos bancos públicos, incluindo o BNDES (leia quadro “Da dívida ao dividendo”). Os bancos, com mais dinheiro em caixa, conseguem adiantar bons dividendos à União, que por sua vez usa esse dinheiro para cumprir a meta de superávit primário. “Isso fez do BNDES uma verdadeira fábrica de superávit primário”, diz o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), que desde 2005 vem tentando criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as atividades do banco.

Outra iniciativa de uma comissão parlamentar mista de inquérito foi colocada pelo deputado César Colnago (PSDB-ES), que havia pedido informações sobre a atuação do BNDES junto ao Grupo EBX, há três meses, depois que Eike Batista trabalhou para levar o estaleiro Jurong do Espírito Santo para o Rio de Janeiro. “O retorno que o banco está recebendo dessas operações não é do tamanho do esforço que o BNDES faz”, diz Colnago. No âmbito da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, o episódio acendeu a luz amarela sobre as autorizações de crédito do Tesouro a empresas estatais. “O Congresso tem de examinar com lupa”, diz o senador Francisco Dornelles, em referência aos empréstimos do Tesouro ao BNDES.

Por requerimento da senadora Ana Amélia (PP-RS), a CAE convocou Luciano Coutinho para prestar esclarecimentos. “O banco tem se lançado em operações de alto risco”, diz Ana. Além dos aportes do Tesouro, há questionamentos sobre o uso do dinheiro dos cofres do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que tem como prioridade financiar o pagamento do seguro-desemprego. Atualmente, o FAT representa a segunda maior fonte de recursos do banco. “O BNDES funciona com o dinheiro do trabalhador brasileiro”, diz Tharcisio Souza Santos, diretor do FAAP MBA. “E nem por isso nos consultam se queremos ser financiadores de grandes empresas, que têm acesso a recursos baratos no Exterior.”

O BNDES defende o financiamento de grandes grupos, pois “a captação no Exterior envolve risco cambial, o que, sob câmbio flutuante, torna o custo do hedge elevado, fazendo com que os financiamentos em moeda estrangeira não sejam apropriados para a maior parte dos negócios”. Mas salta aos olhos o fato de, apenas no ano passado, o fundo ter transferido R$ 17 bilhões ao BNDES, sendo responsável por 27,2% do passivo total do banco. Na ocasião, o saldo acumulado do FAT no BNDES era de R$ 161,9 bilhões. Juntos, o Tesouro e o FAT representam 79,8% das fontes de capital do BNDES. São, portanto, recursos do contribuinte que financiam as escolhas do professor Coutinho. E ele não pode, definitivamente, tomar decisões de risco sem um retorno que compense seu principal investidor.