O professor de Filosofia da USP Vladimir Safatle desistiu de concorrer ao governo de São Paulo por conta de divergências com a direção do PSol, partido ao qual é filiado.
Vladimir é filho do economista Fernando Safatle, que foi secretário de Planejamento do Estado na administração do ex-governador Henrique Santillo e hoje integra o corpo de auxiliares do prefeito de Catalão, Jardel Sebba (PSDB).
O professor acusa o PSol de agir como a esquerda do século 19, como se os seus problemas internos fossem maiores que os debates sociais.
O blog do jornalista Fernando Rodrigues (link aqui) publicou uma entrevista com Vladimir.
Veja na íntegra:
Por que a sua pré-candidatura ao Palácio dos Bandeirantes naufragou?
A direção do PSOL nunca viu a candidatura a governador [de São Paulo] como uma prioridade, e quando isso ficou claro o conflito tornou-se inevitável. A estrutura que eu pedi era mínima, não dá nem para eleger um vereador em Franco da Rocha [município da região metropolitana de SP]. E ela foi conseguida por outros membros do partido. Eu mesmo me engajei para levantar fundos.
O sr. tinha um orçamento de R$ 300 mil para a campanha, é isso?
Era mais ou menos isso. Eu fui convidado para ser candidato, não pedi para ser candidato. Em abril descobri que não havia recurso algum em caixa. Nada. A não ser uma permuta para [produzir o programa de] televisão. E insisti na necessidade de ter uma aliança de frente de esquerda, mas setores do partido eram muito refratários. Acho que foi isso que inviabilizou. Alguns setores se acomodaram a um tipo de campanha na qual os candidatos majoritários não têm muita função dentro do embate eleitoral. Briguei para que o partido pudesse alcançar em torno de 6%, 7% [dos votos na eleição de governador].
O sr. divulgou que teria obtido os R$ 300 mil necessários. Quem se dispôs a doar?
Pessoas físicas que se entusiasmaram com a candidatura. E existiam outros partidos da frente de esquerda que se dispuseram a colaborar. Devido à inércia do partido, eu tomei a frente do processo. A situação era tal que faltavam as condições mínimas.
O PSOL diz que o sr. enviou um e-mail formalizando a desistência da sua candidatura. Mas o sr. afirma que quem não quis a sua candidatura foi o PSOL. O que ocorreu?
Eu me engajei cotidianamente na articulação da campanha, não foram poucas as vezes em que dei entrevistas e fiz intervenções públicas. Por outro lado, há cerca de 10 dias o PSOL virou para mim e disse: ‘Precisa oficializar a candidatura agora’. Eu perguntei quais eram as condições, e eles disseram que em caixa não tinham nada. Eu respondi que não era possível, que dessa forma não teria condições. Eu tensionei o processo, disse ‘ou damos um jeito, ou estou fora’. Enquanto eles já estavam divulgando a nota sobre minha pré-candidatura, eu ainda estava discutindo com o Randolfe [Rodrigues, pré-candidato do PSOL a presidente da República] as possibilidades para viabilizar a campanha. [A minha resposta] era uma questão de jogo interno. E eles, de uma maneira equivocada, jogaram para o campo externo.
Como o senador Randolfe Rodrigues se posicionou?
O Randolfe tentou intervir, ele sabe fazer as contas. Viu que precisava de um palanque no Estado com o maior colégio eleitoral do país. Sabia que era importante, tentou intervir no processo, mas os setores de São Paulo barraram a intervenção dele, aí aconteceu o que aconteceu.
O sr. poderia relatar como foi a disputa interna?
Eles publicaram inclusive uma troca de e-mails [com a direção do PSOL]. Eu acho que quem fez isso deveria procurar emprego na NSA [Agência de Segurança dos EUA]. Porque fazer pública uma correspondência privada é algo até que eu poderia processar. Sem falar no absurdo que é seu partido ter a palavra ‘liberdade’ no nome e ter membros que fazem coisas dessa natureza. O que vai fazer da próxima vez? Divulgar uma conversa telefônica? [Tensionar durante uma negociação] acontece um milhão de vezes, em todas as negociações políticas, você tensiona o processo para destravar uma situação desfavorável. Se fosse tão simples, as pessoas teriam me ligado e perguntado: ‘Você desistiu mesmo, é para valer?’.
Esse episódio parece uma má peça de teatro, que cheira às coisas mais antigas e problemáticas da esquerda. Quando você tenta eliminar algo que não está disposto a aceitar e começa a jogar nas costas dos indivíduos. Se de fato houvesse interesse [na candidatura ao governo de SP], nada disso teria acontecido. A candidatura nunca foi uma prioridade do partido e eles não tinham coragem de dizer isso publicamente. Mas disseram isso nos atos. E isso ficou claro para 99% da militância. As reações são radicalmente contrárias ao que aconteceu.
É muito triste, porque a população olha isso como se fosse uma grande comédia na qual ela já viu todos os atores e já sabe o que vai acontecer. Está vendo os caras da esquerda se matando como se as questões internas fossem as mais importantes do mundo, enquanto o país está pedindo por um conjunto de propostas e ações que possam surgir como alternativa. Você gasta tempo demais brigando, discutindo, batendo boca com problemas internos, como vai ter tempo para discutir as questões centrais? É uma comédia que todo mundo vê de longe, com se fosse uma comédia antiga, um vaudeville [gênero teatral] do século 19, como se os personagens fossem os mesmos, mostrando mais uma vez que a esquerda não está madura para apresentar uma alternativa crível.
O sr. avalia trocar de partido?
Eu não saio do PSOL por entender que é um partido de muitas frentes, com sensibilidade única. Não é uma questão de fidelidade, mas de um momento da esquerda nacional, de reconfiguração profunda. Uma esquerda pós-PT, que vai ter que ser criada, e vai ser, com muita dificuldade, com algumas situações traumáticas. É uma esquerda que não precisa se mostrar uma alternativa eleitoral, mas precisa ser capaz de mostrar que pode se organizar de outra forma.
Na opinião do sr., o que precisa mudar na esquerda?
Perder o ranço dirigista, centralizador. Não é possível você propor à sociedade um tipo de experiência política e, para dentro do partido, fazer o inverso do que propôs. Daí vem muito do rechaço aos partidos que vimos de forma muito forte a partir de junho de 2013.
O que mais me entristece nesse processo é compreender que não é a primeira vez que isso ocorre. O que aconteceu com a Marina [Silva, em 2010]? Ela tentava representar um tipo de posição ideológica clara. E se viu confrontada com uma burocracia partidária que não tinha outros interesses ideológicos. Não é idêntico ao que aconteceu comigo, mas isso mostra a dificuldade de se agir no Brasil com os partidos que nós temos. Existe uma demanda cada vez mais forte por fazer política de outra forma, e as estruturas partidárias aparecem mais como um bloqueio, e não como um canal.
Por que o sr. aceitou ser pré-candidato pelo PSOL?
Não sou alguém que quer fazer carreira política. Estou feliz como professor. Mas acho que existe uma tradição brasileira de intelectuais que entram pontualmente no debate público, para destravar o fechamento desse debate. Abrir, colocar novas pautas, novas questões. Minha ideia era essa. Entrar nesse processo local, de São Paulo, ligado aos protestos de junho, e depois voltar para a academia. Mostrar que há espaço para um discurso de esquerda mais radical e que ele tem densidade eleitoral. E que é importante explorar esse espaço.
O Brasil caminha para uma polarização crescente da política. Vamos ter um polo orgânico da direita conservadora. O pastor Everaldo [pré-candidato do PSC a presidente da República] tem hoje 2% das intenções de voto. E se terminar com 6%? Acho muito sintomático. A extrema direita não precisa vencer uma eleição para definir a pauta política. Veja a Europa, por exemplo. [Com esse patamar de votos,] ela já puxa o debate para o seu lado. A direita não precisa governar, mas influencia a todo momento o debate. Temo que isso ocorra no Brasil em um futuro próximo. E se não houver um polo à esquerda, para fazer um contrapeso, a política como um todo tende a cair para a direita.