terça-feira , 19 novembro 2024
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Em artigo, Fernando Safatle decreta o esgotamento modelo lulista e a crise da esquerda

O artigo é quilométrico (quase 11 mil caracteres), mas quem tiver fôlego para ir até o fim vai ter acesso a um completo raio-x do fim do modelo lulopetista de governar.

O economista Fernando Safatle, ex-secretário de Planejamento de Henrique Santillo e pai de Wladmir Safatle, professor, esquerdista e colunista da Folha de S. Paulo, traça um quadro perfeito da derrocada do lulismo.

Veja:

 

O esgotamento do modelo lulista e a crise da esquerda

Diário da Manhã

Fernando Safatle

As manifestações de junho tiveram o condão de denunciar o esgotamento do modelo político lulista. O jeito lulista de governar conseguiu de forma peculiar costurar um estilo de governança combinando dois componentes importantes: a maioria congressual com a desmobilização do movimento popular. Lula, com a sua liderança nascida no bojo do movimento sindical era o único que tinha cacife político para desarmar o movimento popular retirando-o das ruas e introjetando suas demandas na disputa institucional dentro das esferas de governo. Com isso, conseguiu fazer um governo de conciliação de classes e trazer para dentro do governo interesses conflitantes: de um lado, o Ministério do Desenvolvimento Agrário sob o comando dos trabalhadores rurais e o Ministério da Agricultura sob influência dos ruralistas. De outro lado, os trabalhadores sindicalizados no Ministério do Trabalho confrontando com os empresários e banqueiros ocupando posições estratégicas nos ministérios da área econômica como Ministério da Indústria e Comércio, Fazenda e Banco Central. Canalizados as demandas via institucional e, sobretudo, através do Congresso, o caminho seria portando, conseguir maioria no Parlamento. Assim foi feito, através de manobras e barganhas, culminando com as estripulias do mensalão obteve-se uma larga maioria parlamentar proporcionando-lhe o que se costumou chamar de governança. Os dez anos de governo foram marcados pela matriz congressual, as disputas governamentais se deram nos restritos marcos do parlamento. Em nenhum momento se recorreu ao movimento popular para ser o contrapeso de um Congresso dominado pelas forças conservadoras e aprofundar o processo de mudanças. Neste cenário parecia que tudo caminhava no mais tranquilo e calmo das águas marítimas. O céu de brigadeiro sinalizava a folgada reeleição da presidenta Dilma.

De repente, não mais que de repente, os milhões de pessoas nas ruas mobilizados independentemente dos partidos e organizações sindicais tradicionais demonstrando um ímpeto mudancista deram perplexidade ao PT. Não poderiam nunca imaginar que o povo fosse para a rua a revelia de sua liderança. Afinal, acreditavam que era seu único e exclusivo porta-voz e detinham o monopólio das massas. Como as manifestações não pediram licença ao PT para ir às ruas ficaram aturdidos sem entender o que estava acontecendo. A história pregou-lhe uma peça monumental demonstrando que ninguém detém eternamente o monopólio das massas. Se você distancia delas elas procuram outros caminhos. Na época da ditadura os sindicatos sob a liderança do famigerado Joaquinzão, o símbolo do pelegismo sindicalista, perdeu a liderança para o Lula. Agora, o movimento sindicalista que se deixou ser cooptado pelo governo perde terreno e identidade com as massas. Prova é a mobilização pífia no dia Nacional de Lutas.

Interagindo com esse processo de esgotamento político também ocorria o esgotamento do modelo econômico lulista que consistiu na combinação da política de estabilização de conteúdo ortodoxo com políticas compensatórias e de distribuição de renda. Os bons momentos do governo Lula se deram quando se efetivaram a ampliação do Bolsa Família, os aumentos de salários reais e a ampliação do crédito consignado. Os salários subiram de 70 dólares para 300 dólares. O credito cresceu em uma proporção do volume de crédito em relação ao PIB de 13% para quase 50%. A ascensão de 20 milhões de pessoas socialmente foi um feito e ampliou o mercado interno. Essa combinação virtuosa conseguiu, por um lado segurar a inflação e garantir o poder de compra dos salários. Esse mar de rosas não volta mais. A taxa media de crescimento do PIB nos dois mandatos do Lula alcançou 4%. Durante o governo Dilma regrediu para uma taxa media de crescimento de 2%. Somente voltaria se obtivesse um novo ciclo de distribuição de renda e provocasse uma nova onda de desenvolvimento. Por que isso não é possível dentro do modelo lulista? Para que isso fosse possível seria necessário aprofundar e avançar no processo de distribuição de renda, que, agora, necessitaria de caminhar em uma ampla reforma estrutural. A armadura política do modelo lulista, prisioneiro que esta de uma articulação conservadora nos marcos restritos da política congressual não permitiria aprofundar o processo de mudanças. A reforma tributaria e fiscal que mexe nos impostos regressivos, a taxação de herança e outras medidas de transferência de renda, somente poderiam ser viabilizadas se pudessem contar com a pressão dos movimentos populares.

Ora, sem a mobilização do movimento popular pautado pelas reformas estruturais não se conseguiria oxigenar o modelo lulista, moribundo e patinando no pântano das alianças conservadoras.

O modelo econômico lulista vaza água. A questão não é como o discurso oficialista tenta justificar as manifestações afirmando que quem conquistou uma vida melhor agora quer mais. O problema é outro: quem melhorou de vida agora está tendo dificuldade de manter o seu padrão diante da erosão de seu salário, corroído pela inflação. Não conseguem deter a inflação porque seu arsenal de medidas não ultrapassa os limites da política de corte neoliberal. Somente conseguem mexer nas taxas de juros que presumivelmente contem a demanda. Mas, se a inflação não for apenas de demanda e tiver um componente de custos importante, como fazer? Será que a estrutura oligopólica que predomina em todos os setores da economia não oferecem uma pressão importante no componente inflacionário através do enrijecimento dos preços, administrados de forma monopolista? O governo foi um dos principais incentivadores, inclusive com recursos públicos do BNDES, de intensificar o processo de oligopolizacao da economia brasileira. Esse absurdo cometido deliberadamente pelo BNDES certamente trouxe impactos profundos na política de preços estabelecidos por estes segmentos, com reflexos nas pressões inflacionarias. E impressionante como estas questões não são objeto de preocupação das autoridades econômicas governamentais e nem participam como elemento importante na política de combate à inflação. Alias as questões estruturais da economia não fazem parte do foco do governo, por incrível que pareça. Os EUA, nos albores do capitalismo, no ano de 1911, estabeleceu uma política antitruste, a Lei Shermam. Uma medida de controle da voracidade dos trustes, cartéis e praticas monopolistas que mal ou bem nos EUA é recorrente. Enquanto aqui o próprio governo incentiva através de recursos públicos o processo de concentração e centralização do capital.

Ainda, o déficit nas transações correntes que já alcança a cifra dos 70 bilhões de dólares desarruma a política cambial que por sua vez repica na inflação. A inflação alta, por sua vez, corroeu os salários. Outro pilar, a política compensatória tem seus limites e o governo encontra uma incapacidade de ampliar o Bolsa Família. Por outro lado, a política de credito também chegando ao seu limite, esbarra na capacidade de endividamento das famílias e, diante disso, o que acontece é que as variáveis que consubstanciaram o modelo de distribuição de renda lulista se esgotaram. Por aí, não anda mais para frente. Portanto, o que resta é mesmo mexer com as questões estruturais que demandam um novo arranjo de forcas políticas.

Este é o cenário que se coloca para as forcas políticas que se digladiam de olho nas eleições de 2014. O desafio que se coloca é se pautar por um corpo de ideias que se posicione a esquerda do consorcio PT/PMDB e dar respostas às demandas vinda das ruas. Para isso é preciso avançar no processo de mudanças e costurar uma política de alianças que impulsione as transformações. Só a combinação do movimento de massas com a base de apoio congressual será possível efetivar o processo de mudanças. Esse novo cenário só será possível na medida em que romper os paradigmas da atual política: ao invés da conciliação de classes a tensão de classes. Neste contexto nebuloso, evidentemente, os fantasmas irão reaparecer e o espectro da disputa ideológica rondara a política. Neste mar revolto será preciso navegar. Somente neste percurso se alcançara um novo padrão de distribuição de renda e a partir daí, um ‘estado de bem-estar social’.

A esquerda titubeia diante destas opções estratégicas: continuar patinando no modelo lulista ou criar novas alternativas de avanço no processo de mudanças. Uma parte acredita que tudo que questiona o modelo lulista esta a serviço da direita. Por outro lado, parte da esquerda que rompeu com o PT e aglutina novas forcas ainda não conseguiram concretizar um projeto alternativo, coerente do ponto de vista programático e consubstanciado em uma política de alianças robusto. Neste sentido, observa se notórias deficiências especialmente no campo teórico na medida em que não se clarifica políticas de combate à inflação e de desenvolvimento alternativas as que estão postas no dia a dia, com profunda influencia ainda do receituário neoliberal. A esquerda tem serias dificuldades em sair da defensiva teórica que ainda se encontra e colocar suas propostas alternativas no tabuleiro da política econômica. Essa é indiscutivelmente uma deficiência teórica enorme não só aqui, mas que se faz presente a nível mundial. Os governos ditos de esquerda quando assumem acabam adotando políticas de corte neoliberal. Seu fracasso assim se torna inevitável. Assim foi quando o Solidariedade assumiu o governo na Polônia e Mandela assumiu na África do Sul. Os governos ditos de esquerda na America Latina pouco avançaram nesta questão, apenas em pequena medida na Venezuela, mas sem um projeto consistente do ponto de vista econômico. Com recursos abundantes vindos do petróleo não se admite que o pais vivessem problemas de desabastecimento e inflação. Alias, Celso Furtado em memorável ensaio sobre a Venezuela escrito ainda na década de 70 já antevia os problemas futuros: o maldito ouro negro. Uma economia com desajustes profundos era na época o pais com maior desigualdade social, os recursos abundantes do petróleo, mal empregados, somente iriam agravar ainda mais os problemas de desigualdades.

A tese do desenvolvimento sustentável é uma novidade no cenário político brasileiro. Contudo, falta construir o edifício de ideais de maneira detalhada e precisa sobre seu rebatimento nas questões econômicas, sócias, política, cultural e ética. Qual doutrina econômica é coerente com o desenvolvimento sustentável? É possível defender o desenvolvimento sustentável com uma política econômica com forte influencia da doutrina neoliberal? São questões que precisam ser respondidas.

O certo é que a esquerda carece de um corpo de ideias que consubstancie um programa coerente e consistente que possa responder a voz rouca vinda das ruas. O tempo urge e alguém certamente vai cobrar isso.

(Fernando Safatle, economista; e-mail: fernando.safatle@gmail.com)

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