Colunista da Folha de S. Paulo, João Pereira Coutinho critica quem defende um mundo com uma única “melodia moral” e diz: “Caro leitor, você pode não gostar de ouvir certas coisas. Mas é importante para a sua sociedade que você continue a ouvir o que não gosta”.
Uma verdadeira e bela lição para quem se julga no papel de senhora ou senhor absoluto da verdade e da moralidade. Leia o artigo abaixo:
As virtudes dos nossos vícios
Assisti finalmente a “Lincoln”. Gostei das discussões sobre a escravatura. No século 19, havia quem defendesse a emancipação dos escravos. E havia quem considerasse a afirmação aberrante, para não dizer blasfema. Um negro igual a um branco? Onde é que o mundo iria parar?
Moral da história: pense duas vezes, leitor, antes de fuzilar opiniões politicamente incorretas. No século 19, os antiescravagistas eram os politicamente incorretos de serviço, dizendo o que o maioria não queria escutar.
Aliás, essa é a virtude de opiniões que remam contra a maré dominante. Quando se discute a “liberdade de expressão”, repete-se muitas vezes o clichê conhecido (e circular) de que a liberdade é importante, e blá-blá-blá.
Certo. Mas esse não é o argumento fundamental. Fundamental mesmo é lembrar que, sem liberdade de expressão, não existe possibilidade de progresso moral na sociedade. Sem opiniões politicamente incorretas, os negros teriam demorado mais tempo a sair das senzalas.
Um livro recente ajuda a entender isso. Foi escrito pelo filósofo Emrys Westacott e só o título é todo um programa: “The Virtues of Our Vices: A Modest Defense of Gossip, Rudeness and Other Bad Habits” (“as virtudes dos nossos vícios: uma modesta defesa da fofoca, da rudeza e de outros maus hábitos”).
O livro de Westacott, que o autor apresenta como um tratado em “microética”, não compra a hipocrisia vitoriana de que os vícios privados devem ser substituídos por virtudes públicas. Pelo contrário: os vícios privados já são virtudes públicas.
Em teoria, a rudeza pode ser um vício. Mas há momentos em que a violação de convenções sociais, causando propositadamente dano a terceiros, é necessária.
Não duvido que, para as grandes plantações do sul, perder mão de obra escrava nos Estados Unidos fosse um dano “patrimonial” objetivo. Mas a emancipação dos escravos era mais importante do que a alegada sobrevivência econômica do sul.
O mesmo com o esnobismo. Para a sensibilidade politicamente correta, o elitismo associado à palavra -a ideia intolerável de que você se considera melhor que seu vizinho em matéria de gostos e desgostos- pode ser uma falha de caráter.
Mas sem esse elitismo não haveria progresso na cultura e nas artes. Mais: não haveria sequer progresso na apreciação crítica da cultura e das artes.
Dizer que Guimarães Rosa é melhor que Daniel Galera não é esnobismo. É uma posição racionalmente válida que procura separar a qualidade do lixo. É, no fundo, uma forma de você preservar o seu julgamento crítico quando o mundo em volta conspira para o “relativizar” e o silenciar.
Quando um turista visita o Louvre ou a National Gallery, ele não visita apenas museus. Ele recebe como herança o resultado do elitismo de terceiros: dos que produziram obras na busca da excelência; e dos que souberam selecionar e preservar essa excelência.
E que dizer do humor? Sobretudo do humor doentio, que usa estereótipos capazes de ofender grupos ou minorias?
Responder a essas perguntas só é possível com outras perguntas: você preferiria viver num mundo onde só existisse uma única “melodia moral”?
Ou o humor, e mesmo o humor doentio, tem uma função importante ao testar as suas convicções, ao torná-las mais fortes (ou menos fortes) -e a definir a sua identidade?
Sim, é possível imaginar uma cultura onde ninguém expressa preconceitos, fraquezas, insultos. Basta imaginar as culturas tribais do passado, dominadas por tabus, e onde qualquer dissonância era sacrificada para apaziguar a fúria dos deuses.
Sem humor, e sobretudo sem humor subversivo, a vida sob regimes autoritários seria ainda mais insuportável. Sem humor, e sobretudo sem humor transgressivo, as nossas existências, marcadas pela doença e pela morte, seriam travessias ainda mais desérticas.
Aplaudir Emrys Westacott não é uma apologia da brutalidade pela brutalidade. É reconhecer que a brutalidade pode transportar um bem maior: repensar conceitos e preconceitos na busca interminável da verdade. Mesmo que alguns sejam condenados à cicuta por causa disso.
Caro leitor, você pode não gostar de ouvir certas coisas. Mas é importante para a sua sociedade que você continue a ouvir o que não gosta.