Helvécio Cardoso*
Yoani Sánchez tem cara de criança assustada. Simpática, feinha, digna. É, hoje em dia, a maior celebridade política de Cuba. Jornalista, chamada de “blogueira” – que horror! -, ela é perseguida por fazer oposição ao regime castrista de Cuba. Depois de muita relutância, o governo de Raúl Castro permitiu que ela saísse do país para fazer o seu proselitismo internacional anti-Castro. Ela é, hoje, mais ou menos o que seriam os dissidentes soviéticos dos tempos da Guerra Fria. Não postulam o poder; querem apenas ser livres para dizer o pensam ou para ir aonde quiserem.
Alguns esquerdistas ingênuos, da nova geração, ficam indignados com a atitude da moça. Tem aí uns bobinhos que acham que a Cuba dos irmãos Castro é uma espécie de santuário, um lugar onde a civilização atingiu o seu mais alto e espiritualizado estágio. Cuba não é nem o Shangri-lá socialista que os esquerdistas fanáticos supõem, nem o inferno stalinista que a direita hidrofóbica denuncia. É apenas um país bonito, com um povo extraordinário, altivo, que enfrenta sérios problemas. O regime é parte deles.
Sánchez não é uma traidora da pátria, nem um agente do imperialismo, como alardeiam os babacas manipulados pela embaixada cubana. Alguns que a antecederam no caminho da dissidência foram valorosos combatentes que serviram sob as ordens de Camilo Cienfuegos, Fidel Castro e Che Guevara. Dariel Alarcon Ramirez, o comandante Benigno é um deles. Seu livro de memórias, editado em Paris por Rocher, é ao mesmo tempo comovente e elucidativo. Por ele começamos a compreender como triunfou, em Cuba, aquilo que Marcuse dizia ser o “elemento de autoderrota” que toda revolução gera em suas entranhas.
Benigno lutou ao lado de Che na África e na Bolívia. Foi um dos quatro sobreviventes do cerco que capturou Guevara. Escondido, chegou a ouvir os tiros que mataram o Che. Ernesto Guevara foi covardemente assassinado por militares bolivianos. Fuzilado sem julgamento depois de reduzido à impotência. Caiu em mãos de gente sem noção de honra militar. Benigno acha que Fidel abandonou Guevara à própria sorte.
Não entro nesse tipo de controvérsia. O fato é que, após regressar a Cuba, Benigno começou a, primeiro, divergir dos líderes cubanos; depois, a fazer aberta oposição a eles. O governo do país vinha sendo sistematicamente controlado por oportunistas que jamais deram um tiro durante a revolução. Os verdadeiros revolucionários, os que arriscaram a pele na Sierra Maestra, iam sendo preteridos e alijados do processo decisório. Fidel nunca caiu porque tinha sempre a esperteza de aliar-se aos oportunistas e liderá-los. Atualmente, Benigno vive em Paris, exilado. Ainda socialista e revolucionário. Para o stabilishment cubano, apenas mais um traidor.
Não sei o que Yoani Sánchez pensa. Nunca li as coisas que ela escreve. Cá pra nós, nem estou muito interessado. Para mim, é o que doutrinou Rosa Luxemburgo: “A liberdade é, essencialmente, a liberdade do outro discordar de mim”. Se discordam dela, polemizem; mas não joguem pedras. É feio. Depõe contra nós, nega tudo aquilo que sonhamos.
Seja lá o que for que Yoani pensa e escreve, o que irrita-me é a insistência das autoridades cubanas em difamá-la, em assacar contra sua moral, denegrindo-a por toda parte. Não discutem seus argumentos; insultam-na da maneira mais torpe. Como tenho um fraco por libertários e causas perdidas, conquanto justas, fecho com ela e não abro.
Yoani é uma vítima da intolerância. Para mim, é fácil identificar-me com ela. Pertenço a uma geração que, como ela, passou sua infância, adolescência e início da juventude sob o tacão de uma ditadura sanguinária, intolerante. Sei o que é viver em um país sem liberdade, onde a opinião individual é controlada pelo Estado, discordar do governo implica risco de vida, e todos aqueles direitos e garantias que são a essência de qualquer democracia são espezinhados por repressores truculentos. Por isso entendo a luta dessa moça, ainda que eventualmente possa discordar de suas opiniões políticas. Ela não tem culpa se o nosso sonho acabou. Mas quem não cheirou gás lacrimogêneo nem sequer sonhou. Essa rapaziada que foi lá vaiar Yoani nunca cheirou gás lacrimogêneo na vida. Deve ser perdoada porque não sabe o que faz.
Yoani esteve no Congresso, falou aos parlamentares. Repudiou o bloqueio a Cuba imposto pelos EUA há décadas. Vê-se, por aí, que é uma patriota. Pode não gostar dos que governam seu país, mas não renega seu povo. O bloqueio a Cuba é uma das coisas mais vergonhosas da história. Não é ditado por razões ideológicas. O mesmo país que alegremente reatou relações com a China de Mao, e hoje se dá muito bem com o estaliníssimo Vietnam, que o derrotou em campo de batalha, é o mesmo que continua oprimindo o povo cubano e, por pura pirraça, ainda ocupa uma pedaço de seu território, Guantánamo, onde mantêm uma prisão especializada em torturar presos políticos. Yoani também quer que os EUA saiam de lá.
A rapaziada que se diz de esquerda, que, manobrada pela Embaixada de Cuba, foi aos aeroportos hostilizar Yoani, deveriam, em nome dos ideais libertários que animam o verdadeiro socialista, ir recebê-la com flores e aplausos. Essa moça luta para ter em seu país a mesma liberdade que hoje temos. A liberdade de que gozam os que foram vaiar Yoani foi conquistada no Brasil por jovens como Yoani, que foram à luta, que sofreram, que não se entregaram.
Ela pede apenas para ter o direito de criticar o governo de seu país e não ir para cadeia por causa disso. Igualzinho a nós, os jovens dos anos 70 que foram às ruas exigir anistia , eleições diretas e todas essas coisinhas banais que se traduzem pela palavra “democracia”. Então, a luta de Yoani também é a nossa luta.
Caiu-me o queixo quando vi a turba ensandecida babando ódio ao desembarque da moça. A minha vergonha só não foi maior por que entre os que a amparavam estava o bravo senador Eduardo Suplicy. Este homem, que sempre se pautou por princípios, é o que restou de bom no PT. É a reserva moral – se me permitem este chavão piegas – de um partido que a cada dia vem traindo a si mesmo. Suplicy nunca fez parte das curriolas petistas, nunca precisou de favores dos governos petistas, por isso não teme os grupos de pressões nem se deixa manipular pelos defensores da “linha justa”.
Respeito e venero a Revolução Cubana. Reconheço e proclamo as grandes conquistas dessa revolução. Compreendo as dificuldades pelas quais o país passa e sou solidário ao povo. Reconheço o esforço de Raul Castro para reformar o regime, para abri-lo. Sei que não é fácil. Mas Cuba não tem alternativa. Ou marcha resoluta para a democracia ou afunda de vez. O modelo castrista faliu. Claro, o bloqueio americano, que transformou a ilha em uma cidade sitiada, contribuiu bastante para a falência do regime. Mas é bem provável que mesmo sem o bloqueio o regime castrista acabaria entrando em colapso. É lei da História. A dialética lenca, mas não falha. Aconteceu o mesmo na URSS. O erro de Gorbatchov não foi ter iniciado reformas democratizantes, foi não ter acelerado-as.
Temo que a relutância dos Castros em abrir o regime acabe mal, como acabou na URSS. A Rússia livrou-se dos comunistas, mas não se tornou democrática. À opressão dos burocratas do partido seguiu-se à selvageria das máfias e à opressão do clero bizantino. Receio que depois dos Castros os mafiosos de Miami e os escroques de Washington tentem transformar o país em mais uma estrela da bandeira listrada dos EUA.
O melhor a fazer, então, é dar liberdade total aos cubanos para que se expressem. Será o resgate de um compromisso solene da revolução de Fidel e Guevara postergado há muitas décadas, mas nunca prescrito.
No mais, o que se pode dizer a Yoani é: Seja bem vinda, companheira. Desculpe-nos pelos maus modos desses bobalhões que a vaiaram e nos cobriram de vergonha. A culpa é nossa – não soubemos educá-los.
*Helvécio Cardoso é jornalista.