Em seu artigo dominical em O Popular, a jornalista Cileide Alves, editora-chefe do jornal, fala sobre o problema das drogas e faz um rasante na questão da morte dos moradores de rua.
Ao final, afirma inconformada que a solução é esperar por Deus.
Veja o artigo na íntegra:
Só Deus?
“Sou dependente, fio. Se eu não der uma puxada não rendo, não. Dói tudo quanto é de osso, tudo. A gente tem de fumar”, disse Maria (nome fictício, pois não foi identificada), uma moradora de rua e dependente química, ao repórter Handerson Pancieri, na TV Anhanguera, em 11 de abril. Sua sinceridade chocou, mas o desconforto continuaria.
João (também nome fictício) surge na cena seguinte da mesma reportagem com o cachimbo de crack em uma das mãos. Mal consegue falar, apenas balbucia sua doença: “Onde estou ele (o cachimbo) está atrás. Dele eu não me esqueço.” João deve ser jovem, mas seu rosto queimado pelo sol e com as marcas da droga dá a impressão de que ele é bem mais velho.
O crack não é ilegal? Não naquele mundo. Está à vista de quem quiser enxergar. Basta parar e olhar. “Deus vai me ajudar, fio, só Deus”, disse Maria a Handerson.
Ninguém lhe ajudou e Maria foi presa na segunda-feira à noite pela Polícia Civil. Assim, doente. A mulher que espera ajuda divina veio do Maranhão para se encontrar com o marido, que se mudou antes para Goiás, atrás de emprego e de uma vida nova. Encontrou o companheiro viciado em crack. Aprendeu a fumar com ele. Um dia o marido sumiu. Sozinha, a nova viciada ganhou as ruas. A família acabou, mas ela fala e age como se tivesse uma. Trata os jovens por “fio”, dá bronca em seus companheiros de grupo e é respeitada. Faz o papel da mãe nesta estranha família.
João é de Aparecida de Goiânia e perdeu o contato com seus familiares. Ele é o único goiano no grupo que Handerson Pancieri encontrou naquela quinta-feira, às 7 horas da manhã, nas proximidades da Avenida Goiás, no Bairro Popular. Os demais fizeram o mesmo percurso de Maria: vieram do Nordeste brasileiro atrás de trabalho. Encontraram o crack e as ruas. Quem os vê de perto tem a impressão de que não são normais. “Eles são doentes. Pessoas normais não vivem nesse mundo em que estão”, afirmou um comerciante da região que convive diariamente com esse grupo.
Sem nome (são só moradores de rua), família e com a cara assustadora da pobreza, do abandono e de doentes, tornaram-se invisíveis para a sociedade e, especialmente, para o poder público. Não rendem voto e ainda por cima dão muito trabalho. Melhor fingir que não existem. Viraram mortos-vivos e transformaram-se em presas fáceis para os únicos que os enxergam: os traficantes que exploram o fio de vida que ainda lhes resta.
Assim, vão sendo impiedosamente assassinados, agora não mais metaforicamente. Já são 30 mortos. A polícia culpa o tráfico, como se este fosse um desastre natural, e assim o tráfico segue firme e forte e as mortes também. Uma história de puro horror que não abala ninguém, nem os órgãos de saúde pública responsáveis pelo tratamento de dependentes químicos. É, Maria tem razão em esperar só de Deus.