Helvécio Cardoso*
Uma discussão vem ganhando corpo nos meios esclarecidos.Trata-se da proposta de um novo pacto federativo. O tema é de suma relevância, sobretudo para as populações de estados periféricos, como o nosso. No entanto, a grande massa dos políticos prefere perder tempo com bobagens que não levam a nada, quando não se preocupam apenas com suas possibilidades de reeleição.
Pacto federativo refere-se às relações entre a União e os Estados, entre a União e os Municípios, entre os estados e os Municípios. As cáusulas deste pacto são as que se contêm na Constutição Federal. Elas deveriam estabelecer um relacionamento harmonioso entre os três entes federados, para o bem de todos e felicidade geral da Nação. Não está. Os conflitos de interesses vão se tornando cada vez mais agudos. A União está sufocando os estados e os municípios. Um novo pacto federativo impõe-se necessariamente como alternativa à degeneração do conflito latente em guerra civil em ato.
Não estou dramatizando. Todas as guerras civis brasileiras foram tentativas de superar, pela força, relações de dominação que tornavam insustentável a vida de alguns brasileiros. Das guerras dos emboabas, opondo paulistas a reinóis, passando pelas sangrentas guerras fratricidas do Rio Grande do Sul, até à Revolução Constitucionalista de 32, para ficarmos apenas nesses conflitos mais significativos, a História do Brasil tem sido marcada por uma dramática incapacidade de integrar a nacionalidade em uma organização político-administrativa justa e equitativa.
O que anima esses conflitos, quase sempre latentes, quasae sempre à um passo de explodir em guerra atual, não são disputas em torno de doutrinas e ideologias. As receitas filosóficas do bom regime, a racionalidade de algumas formas de governo, a excelência de certos arranjos federativos são apenas a ponta do iceberg. Por baixo desses debates aparementemente metafísico em que se deleitam os amantes dos belos argumentos, corre um rio de larvas incandecescentes. São os conflitos sociais, as contradições de ordem econômica, as disparidades políticas, o aviltamento dos poderes locais em face da onipotência do poder central.
Como os políticos brasileiros, em geral, não têm vocação para estadistas, coube à tecnocracia iniciar a discussão, estreitando-a porém nos limites de seus interesses espcíficos. Em outubro do ano passado, reuniram-se em Goiânia secretários de planejamento de todos os Estados, naquele que foi o 51° Forum Nacional de Secretários Estaduais de Planejamento, conclave que foi prestigiado pelo Secretário Nacional de Assuntos Federativos da Presidência da República, o goiano Olavo Noleto. A conclusão a que chegaram os participantes é que a superação das desigualdades regionais, para se alcançar um desenvolvimento sustentável dos Estados, pressupõe necessariamnte um novo pacto federativo.
Até aí, morreu Neves. Á proposição de um novo pacto federativo introduz uma questão inescapável: quais as bases de um novo pacto? Ainda estamos naquela fase em que tudo se resume a uma boa reforma tributária que estabeleça proporções mais justas das fatias do bolo. Há uma grita geral contra as atuais regras de distribuição das receitas da União. Há um pavor generalizado contra iminente abolição da “guerra fiscal”, pelo STF, e, claro, resta a permanente angústia dos Estados em face da impagável dívida para com a União.
A reparticipação das receitas tributárias pelos estados e municípios é iníqua, mas esta iniquidade se acentua quando a União lança mão de mecanismos ainda mais concentradores:as contribuições, cuja arrecadação pertence totalmente ao tesouro federal. E também prejudica os Estados ao promover, de forma sistemática, isenções de impostos cuja receita são, em parte, direito dos estados. Essas renúncias repercutem nos Estados como perda de receitas. De resto, os estados – sobretudo os do Centro-Oeste – vem sendo penalizados pela negligência do governo federal em fazer o acerto das compensações oriundas de operações de exportação, determinadas pela Lei Kandir.
O debate sobre um novo pacto federativo se empobrece quando limita-se à relação fiscal entre Estados e União. Ele tem que sair dos gabinetes refrigerados da trecnocracia e ganhar as ruas, incendiar as imaginações. É preciso sair das palavras para a ação.
A relação fiscal entre estados e União é parte substancial do problema, não é todo o poblema. Há uma relação estreita, conquanto pouco visível, entre a relação fiscal e a autonomia dos entes federativos. Ou falta dela.
Os estados federados brasileiros não passam, hoje, de uma ficção jurídica a mascarar sua verdadeira essencia, a de meras províncias de um país que, cada vez mais, vai ganhando contornos de Estados unitários. Mas mesmo em certos estados unitários, como a França, por exemplo, as comunes e os departements gozam de uma extraordinaria autonomia de que nem em sonhos os municípios e os estados brasileiros poderão possuir.
Uma guerra antiga
A luta entre poder local e poder central, por mais autonomia, é tão velha quanto o descobirmento. As primeiras vilas coloniais tinham um poder quase soberano em face dos governadores provinciais, ficando restringidas apenas pela supremacia da Coroa. Sob o Império, não só as vilas, mas também as províncias, tiveram cassadas toda e qualquer prerrogativa político-administrativa. Até seus governantes eram nomeados discricionariamente pelo Gabinete Imperial, escolhidos dentro de uma casta de mandarins sem qualquer vinvulação afetiva com a terra que governavam. Não é, pois, de se admirar que, nas províncias mais pobres, caso de Goiás, a aristocracia rural tenha se tornado militante da causa republicana.
A República transformou as províncias em Estados e deu a estes uma autonomia tão completa que deles se poderia dizer que eram quase países soberanos. Depois que os militares florianistas se foram, e o Café com Leite passou a reger a República, os ciclos das intervenções federais foi encerrado, cabendo a cada estado resolvr intrnamente os seus problemas. Assim, quando, m l910, uma tropa jagunça destituiu um governador goiano. liquidou o bulhonismo e inaugurou a hegemonia caiadista, o governo federal nem tomou conhecimento.
Depois de 30, porém, os Estados voltaram à condição de província, sendo governados por interventores nomeados por Getúlio. Retomava-se o viés centralizador do governo federal, abrindo mais um ciclo que Golbery do Couto e Silva, estudando judiciosamente o assunto, denominou de “sistóles e diástoles”, palavras que ele foi buscar no jargão da medicina.
A chamada “Revolução de l964”, da qual o já mencionado Golbery foi ideólogo de proa, restringiu ainda mais a pouca autonomia dos poderes locais concedidas pela Carta de 46. Os Estados voltaram a ser, de novo, províncias, governadas por filhos da terra, é verdade, mas, de qualquer modo, nomeados pelo presidente da República.
A Carta Cidadã de l988 avançou muito pouco. Estamos distantes daquele arranjo idelaizado por Ruy Barbosa, que, inspirado na Constituição dos EUA, sonhou fazer da república brasileira uma federação de Estados mais ou menos parecida com a união americana.
Quem ganha, quem perde
Um dos argumentos dos que defendem a centralização e a pouca autonomia dos Estados é que, no Brasil, o papel da União como planejador e indutor do desensolvimento econômico e social é indeclinável. É uma idéia tão poderosa que acabou pentrando o senso-comum. Até o mais exaltado bairrista não seria capaz de conceber uma ordem em que estados e municípios tenham uma faixa de autonomia bem mais larga do que a que possuem atualmente. E, no entanto, um novo pacto federativo passa justamente pela redefinição das esferas de poder de cada ente federativo. Só depois que os estados e os municípios escaparem à tutela insitucional da União é se poderá chegar a um sistema tributário relamente justo.
Se enfraquescer o centralismo da União em favor de uma verdadeira autonomia para estados e municípios uma idéia que fere o senso comum, então é preciso subverter o senso comum. É preciso, pelo menos, suspendê-lo momentanemante a fim de que possamos comprrender em profundidade a questão. Suspender o senso comum, no caso, é levantar os véus de Maya que distorcem nossa visão da realidade histórica.
É preciso identificar as forças políticas, econômicas e sociais sobre as quais foram edificadas, e que sustentam, o atual arranjo federativo. Tenho para mim, e o digo apenas de passagem, que elas estão bivacadas nos ricos estados do Sul e do Sudeste. Mas este é um tema que comporta outro artigo.
Seja como for, é mais do que evidente que o governo Dilma e o PT não estarão alistados na causa de um novo pacto federativo. Não apenas por estarem, de certo modo, comprometidos com essas forças do conservadorismo institucional. Notem que o reformista PT nunca se interrou em promover reformas estruturais, preferindo a elas a política do pão e circo, que já dá sinais de esgotamento. Não é apenas o comprometimento que exclui o petismo da luta por um novo pacto social. Um importante elemento inibidor atua poderosamente sobre as mentes petistas. É a ideologia.
É da tradição da esquerda brasileira conceber a presidencia da república como uma monarquia eletiva e temporária. De posse dos estraordinários poderes da Presidência, essa esquerda acredita que pode tudo, até instituir a ditadura do proletariado via portaria ministerial. Esse voluntarismo pueril, informado por um idealismo filosófico ingênuo, guiaram as estatégias políticas das esquerdas. Conquistar a Presidência é a prioridade. Brizola sempre sonhou com isso, e acreditava que, uma vez chegando lá, seria acatado como um daqueles tiranos populares que fizeram a alegria da plebe nos mundo greco romano. Outro não foi o comportamnte de Lula, incendiando o imaginário plebeu com seus desaforos, da boca pra fora, ao patriciado tupiniquim.
Não por acaso ambos cerram fileiras contra a instituição do parlamentarismo no Brasil, tendo jogado papel decisivo pela rejeição plebiscitária da proposta. Hoje, o PT continua apostando tudo em se manter na presidência, deixando aos aliados o controle dos poderes locais. Quanta diferença da estatégia do PC francês, que investe pesadamente na conquista de (mairies) , a partir das quais influi poderosamente no jogo político da França.
A renovação do pacto-federativo é, portanto, uma tarefa política, e como tal precisa envolver toda a sociedade, sendo alçada à condição de assunto momentoso, pautando os debates eleitorais. Pelo menos dois políticos já estão tentando agendar o tema: O senador Aécio Neves e o governador Marconi Perillo. Ambos vêm fazendo discursos em que denunciam o carater iníquo do pacto atual, e clamam pela tão sonhada reforma tributária.
Pena que, como São João Batista, estejam a clamar no deserto. A imprensa nacional, quase sempre alienada e refratária às grandes questões, não se importa minimamente com este assunto. Aguarda impaciente a eclosão de algum escândalo para fazer sensação, como de hábito. Os partidos, por sua vez, ao invès de cumprirem o papel movimentos de opinião pública, dedicam-se meramente à administrar suas picuinhas cotidianas, esperando que as grandes reformas lhes caiam às mãos como frutos maduros. Quando cair, e vão cair, cairão da árvore da vida, não da árvore do conhecimento. E ao comê-los, os partidos saberão o que é o inferno.
* Helvécio Cardoso é jornalista