sábado , 27 abril 2024
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Pércio de Souza: “Curva na baixa renda vai definir plano de ação acerca do coronavírus no país”

(Valor Econômico) – Desde o final de março, um grupo multidisciplinar organizado por Pércio de Souza, sócio-fundador da assessoria financeira Estáter e do Instituto Estáter, tem feito de dois a três encontros virtuais por semana para discutir e analisar dados globais e nacionais da covid-19 e tentar contribuir com um planejamento público e privado de retorno às atividades no país. São especialistas em saúde pública, em baixa renda, infectologistas, psicologia de massa, empresários. A proposta é utilizar o tempo do isolamento para estabelecer uma discussão, sem tabus, sobre cronogramas e foco de investimentos.

Para Souza, as próximas duas semanas serão determinantes para traçar essa estratégia – já que agora a contaminação começa a chegar na baixa renda brasileira e será possível, em 15 dias, ter alguma noção da velocidade com que se imprimirá nas classes mais carentes. “Se tomarmos o ritmo dos Estados Unidos, serão mais de mil mortes por dia. Se isso acontecer, ninguém volta para a rua com confiança e não adianta tentar fazer por decreto”, pondera. Para economia, é pior a falta de confiança do que números negativos, avalia ele. É no setor público, justamente, que há risco de falta de leitos de UTI.

Também é um tempo adicional razoável para análise de diversas variáveis, em diferentes países, e eficácia ou não de medidas públicas. A análise inicial do instituto mostra, por exemplo, que na Alemanha o índice de mortalidade entre contaminados é menor mesmo tendo uma restrição de mobilidade mais baixa quando comparada a outros países europeus. Por outro lado, Cingapura, que era considerado um sucesso na contenção da pandemia, indica que o isolamento elevado e as medidas iniciais só retardaram o surgimento de casos no país – que agora vive uma segunda onda de contaminações mais forte que a primeira.

O indicativo é que a covid-19 tenha um grau de contaminação por volta de 2,6 – ou seja, um infectado contamina praticamente três pessoas, o que seria o dobro da gripe comum. “Por isso considero que os países bem-sucedidos nesse processo não são os que têm menos contaminações, mas menos mortes”, diz Souza.

A análise – que se baseia em informações de Ministérios de Saúde, OMS e estudos de universidades – também aponta a necessidade de mudanças na abordagem de política de saúde, considerando que há mais mortes entre infectados não hospitalizados e que é inviável um aumento exponencial de testagens – o que indica que pode ser difícil manter o modelo de tratamento em casa e retorno de mobilidade por teste sem reflexo nos índices de mortalidade. A seguir, os principais trechos da entrevista de Souza:

Valor: Qual é o ponto central de debate do grupo de trabalho?

Pércio de Souza: O primeiro passo é tirar um pouco dos mitos que estão sendo criados, como crescimento acelerado de mortes em jovens adultos sem comorbidade, insuficiência de UTI em todo lugar, eficácia comprovada de isolamento radical e planejamentos baseados em testagem de milhões de pessoas. A partir de análise de dados e uma discussão sem preconceitos, queremos contribuir para um plano gradual de retomada social.

Valor: Qual é o mito em relação ao isolamento?

Souza: Para começar, o mito de que algum dos lados radicais está certo: o que diz o isolamento é dispensável e é só gripe e o que fala que é a única coisa a se fazer. Não consigo enxergar, nos números, que o confinamento é necessário do jeito que está sendo feito. Não sou contra esse que estamos fazendo, mas contra ficar dentro dele sem pensar em alternativas de médio e longo prazo, sem falar de futuro. A Alemanha teve menor incidência de óbitos e fez uma redução de mobilidade menor do que a França ou Itália. Temos que considerar também que é um vírus perene, que não é erradicado, mas ambientalizado.

Valor: O isolamento precisa estar aliado a que outras medidas?

Souza: Meu ponto sobre isolamento é que o debate deveria ser menos tabu e mais aberto. Ninguém pode enfrentar uma guerra com uma arma só. Qual é a graduação de isolamento que precisa? Em quanto tempo? E com que base de referência, já que o número de positivos é diferente do número de contaminados pela restrição de testes?

Valor: Qual é o dado principal para definir isso no país?

Souza: O ritmo da curva no Brasil e que padrão vai seguir ainda é um enigma. Por um lado, o país tem uma população percentual acima de 60 anos que é a metade da de países europeus e EUA, o que poderia gerar impacto menor. Por outro lado, tem dimensão continental, o que pode trazer efeito mais letárgico e por fases. Além disso, a moradia da classe de baixa renda é muito segregada da classe alta e agora que o vírus começou a chegar nas comunidades.

Valor: Quais dados analisam nas comunidades?

Souza: De uma semana para cá, hospitais privados de referência têm redução de demanda, e os hospitais públicos estão com crescimento da curva, mas ainda não muito inclinada. E isso não se deve a isolamento. Conversando com líderes comunitários, houve uma redução de cerca de 40% no início, mas agora em torno de 20%. A explicação é a faixa etária nas favelas? Menos internações ou menos comorbidade? Ainda é um ponto de atenção e muito relevante para estabelecer o processo de volta às atividades.

Valor: Em quanto tempo isso pode ficar mais claro?

Souza: Avaliamos que é possível ter um plano mais organizado nas próximas duas semanas, quando teremos uma ideia melhor desse comportamento da curva no Brasil. Se a intensidade será semelhante à norte-americana ou se será mais lenta e administrável. Nos Estados Unidos, a curva tem se mostrado mais alongada. Houve crescimento de 70% dos óbitos na nona semana epidemiológica, período em que foi decrescente em países europeus. Se vier a curva americana, com mais de mil mortes por dia, vai ser uma sobrecarga enorme ao sistema de saúde, uma tragédia, que não vai ter forma de convencer a população de que está na hora de voltar à rua e ao escritório. Não adianta tentar fazer isso por decreto, mas mostrando plano de segurança.

Valor: Como o governo e as empresas podem se preparar para as próximas semanas?

Souza: Construindo uma solução, uma aliança entre o setor privado, eventualmente ministério público, classe trabalhadora e governo. Não vai funcionar se alguém tiver um plano isolado. E naturalmente o custo econômico do que fazer é importante.

Valor: Como calcular esse custo?

Souza: O peso de investimento na retomada com segurança é irrisório perto do efeito nefasto que essa insegurança traz para economia. Contribuir para que uma empresa opere sem plena capacidade é mais barato do que deixá-la parada. Experiências após furacões nos Estados Unidos mostraram um efeito negativo de subsídios por prazo longo para as pessoas. Usar capital para voltar à atividade de forma segura é melhor do que o gasto assistencialista. Isso significa, por exemplo, colocar mais ônibus na rua e mais turnos de metrô para que não haja aglomeração para o trabalhador chegar à empresa. Reabrir os restaurantes, permitindo metade da capacidade.

Valor: O tratamento de infectados em casa tem sido eficiente?

Souza: Uma coisa que fomos constatando, semana a semana, em lugares como Itália e Estados Unidos é que o número de mortos é maior do que o número de contaminados que passaram pela UTI. Uma das explicações é que as pessoas em casa, quando começam a sentir falta de ar, já chegam ao hospital com índice de oxigenação muito baixo ou nem chegam ao hospital. Há um trabalho em Stanford com essas análises. No Brasil, os médicos começaram a ver uma situação semelhante. Abre uma discussão, por exemplo, de fornecer ou não oxímetro com verba do governo para quem está em casa.

Valor: Aumentar o número de testes é um plano de ação eficaz?

Souza: A solução de testar milhões de pessoas tem desconexão da realidade. É inviável testar 10 milhões de pessoas em 60 dias e se basear nisso como plano para retomada. A Alemanha, com estrutura de saúde organizada, conseguiu fazer 1,7 milhão de testes em seis semanas, 2% da população. Os EUA, que alocaram bastante recurso nisso, testaram 3,5 milhões. Ou se inventa uma forma diferente de testagem ou não dá para contar com isso como plano. Sem falar na imprecisão dos testes. Ter a convicção de informação equivocada é pior do que não ter convicção nenhuma.