domingo , 17 novembro 2024
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Miséria e pobreza rondam áreas ocupadas próximas ao Palácio da Alvorada

Na foto acima: cenário da miséria instalada próximo ao centro do poder. Ao fundo, as torres do Congresso.

Reportagem publicada no site da BBC Brasil

Levada ao pé da letra, a afirmação da presidente Dilma Rousseff de que o Brasil “venceu a pobreza extrema visível” não resiste a um rápido giro pelas vias que cercam o Palácio da Alvorada, residência da governante, e a Esplanada dos Ministérios.

À beira das avenidas, em acampamentos visíveis a qualquer motorista ou passageiro, centenas de pessoas vivem em barracos sem acesso a redes de água, esgoto, eletricidade e, em muitos casos, tampouco a programas de transferência de renda.

O discurso de Dilma, em 25 de fevereiro, ocorreu dias após o anúncio da ampliação do programa Brasil sem Miséria. Em seu programa de rádio, ela afirmou que a medida zeraria o cadastro de brasileiros considerados extremamente pobres pelo governo, com renda familiar per capita inferior a R$ 70.

“Vencemos a pobreza extrema visível e agora vamos atrás da pobreza extrema invisível, aquela que teima em fugir aos nossos olhos e aos nossos programas sociais”, disse a presidente. Dilma estimou que 700 mil famílias (“nas periferias das grandes cidades, em comunidades ribeirinhas e extrativistas na Amazônia, no semiárido do Nordeste e em outras áreas rurais”) ainda estejam à margem das políticas públicas.

No entanto, o caso das famílias acampadas não na periferia, mas coração da capital federal, ilustra a complexidade da missão do governo, além de expor lados da pobreza que não foram erradicados com a expansão dos planos de transferência de renda.

De acordo com a Central de Cooperativas de Materiais Recicláveis do Distrito Federal, há entre 400 e 500 pessoas que vivem acampadas no Planto Piloto, zona central de Brasília, onde trabalham informalmente na coleta e separação do lixo para reciclagem. Em todo o Distrito Federal, o grupo soma até 3.500 pessoas, das quais grande parte não recebe qualquer benefício do governo, segundo a central.

A BBC Brasil visitou um acampamento vizinho ao Clube de Golfe de Brasília, no Setor de Clubes Esportivos Sul. Ali, a poucos quilômetros do Palácio da Alvorada, famílias se instalaram em meio à densa vegetação do cerrado, em área com vista para as torres do Congresso.

Numa clareira que dá acesso a seis barracos de lona e madeira, habitados por 17 pessoas, crianças brincam e adultos conversam em círculo. “Nunca recebi nada do governo”, diz Marcilene Modesto dos Santos, de 30 anos.

Mãe de três filhos em idade escolar – uma quarta filha morreu de dengue, aos 9 anos –, ela passa a maior parte do dia a poucos metros dos barracos, separando o lixo que chega em carroças puxadas por cavalos, meio de transporte comum entre os trabalhadores do setor.

Como ela e o companheiro, juntos, têm renda inferior a R$ 400, integram o público-alvo do Bolsa Família. Mas Santos diz que jamais conseguiu se cadastrar no programa.

Outros moradores também citaram dificuldades para agendar entrevistas nos centros do Distrito Federal responsáveis por registrar famílias para os programas federais.

Mãe de três filhos em idade escolar, Girlene Pereira da Silva, 32 anos, diz que recebeu pagamentos do Programa Fome Zero, lançado em 2003 e posteriormente absorvido pelo Bolsa Família. No entanto, após trabalhar com carteira assinada por um curto período, diz que perdeu o benefício e jamais conseguiu atualizar seu registro.

O cadastramento para os programas federais é atribuição dos governos locais. Em Brasília, entrevistas devem ser agendadas pelo telefone 156. Desde o início da semana, a BBC Brasil tenta marcar um horário nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) da cidade, mas o sistema está fora do ar.

Procurada, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda não explicou as falhas no serviço telefônico, mas disse em nota que suas equipes estão sendo ampliadas para aprimorar o atendimento às famílias pobres.

Afirmou ainda que, a partir deste mês, fará uma “intervenção sistemática” em áreas ocupadas por trabalhadores do setor de reciclagem para identificar famílias que possam ser incluídas no Cadastro Único.

EXPECTATIVAS
Sem filhos, Emílio Luis da Silva, de 62 anos, não se enquadrava no Bolsa Família até a última alteração no plano, que estendeu o benefício a todas as famílias com renda per capita inferior a R$ 70.

Nascido em Petrolina (PE), ele migrou para Brasília há oito anos em busca de trabalho. Ao não encontrar ocupação formal, comprou uma bicicleta e passou a percorrer o Plano Piloto atrás de fios de cobre ou máquinas avariadas nas lixeiras.

Sua renda varia conforme a sorte: se encontra algum equipamento valioso e consegue consertá-lo, pode ganhar algumas centenas de reais, o equivalente a um ou dois meses normais de trabalho.

Nos tempos de azar, conta com a comida e o dinheiro doados por moradores de Brasília para se manter com a esposa, Maria Lúcia Maciel, de 47 anos. Os dois se instalaram perto do Clube de Golfe há três anos. Desde então, Silva afirma ter tentado comprar uma residência em Brasília pelo programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal.

Os planos ruíram, segundo ele, quando descobriu que precisava ganhar ao menos três salários mínimos mensais para pleitear um financiamento. Silva então cogitou alugar uma casa em alguma cidade-satélite, mas, como trabalha de bicicleta e o lixo que recolhe se concentra no Plano Piloto, abandonou a ideia. “Não daria conta de morar lá e vir para cá todos os dias no pedal.”

Para que passe a receber o Bolsa Família, ele aguarda que o Congresso aprove a Medida Provisória que instituiu as mudanças no plano, o que deve ocorrer nos próximos meses.

Auxílio-doença

Já outras duas famílias da ocupação recebem repasses pelo programa. “É um dinheirinho que faz a diferença”, diz Solange da Silva, 35 anos, mãe de dois filhos.

Desde que, há dois anos, passou a receber R$ 100 mensais pelo plano, ela busca algum auxílio governamental para seu irmão, que tem crises frequentes de epilepsia e foi impedido de trabalhar pelo médico. “Na última vez que saiu, teve uma crise e caiu de um caminhão. Hoje cada um ajuda no que pode para ele ficar em casa.”

Mesmo entre alguns beneficiários do Bolsa Família, há queixas sobre o programa. Em visita a amigos que vivem na ocupação, Francisco Neto, 61 anos, diz receber mensalmente R$ 166 do plano para criar seus três filhos, que têm entre 10 e 15 anos. Viúvo – a esposa foi assassinada após uma briga – e morador de Planaltina, cidade goiana no entorno do Distrito Federal, ele afirma que o repasse “não dá nem para o café da manhã”.

Neto faz bicos, consertando bicicletas de vizinhos. No ano passado, porém, teve diagnosticado um engrossamento da próstata (hiperplasia prostática benigna), doença que provoca fortes dores nas pernas e bloqueia a urina.

Na véspera do fim de ano, diz ele, o hospital onde se trata suspendeu a entrega de seu remédio, cujas cartelas custam R$ 200 ao mês. Interrompido o tratamento por dois meses, as dores se agravaram e ele não foi capaz de trabalhar. Mas só por alguns dias.

“A pobreza funciona assim: se você se abate por causa de uma dor, não sai mais de casa e vai piorando. Mesmo nas minhas condições, eu tenho que fazer minha correria.”