A tendência de registro de novos casos e mortes da Covid-19 parece estar seguindo à risca no Brasil a estimativa de cientistas de que as oscilações no nível de adesão à quarentena demoram duas semanas a serem sentidas. Quando a mobilidade de pessoas atingiu o mínimo da tendência no país, em 24 de março, a Pandemia esboçou desaceleração 15 dias depois. Naquele dia, a procura por transporte público caiu 69% em relação a janeiro, segundo dados do Google com base em celulares rastreados.
Mas o isolamento social daqueles que podem ficar em casa, feito para reduzir o contato entre as pessoas (inclusive as não infectadas) e desacelerar a disseminação da doença, começou a se reduzir em força depois disso, e perdeu um quinto da adesão até 17 de abril.
Ontem, 13 dias depois desse relaxamento, o número de casos engatou tendência de alta pelo quarto dia seguido, com 7.218 novos casos notificados num único dia, o recorde até agora, além de 435 mortes. O país tem agora 87.187 casos confirmados e 6.006 mortes.
A dimensão do problema:Considerada a subnotificação, casos de coronavírus no Brasil estariam acima de 1,2 milhão, estima grupo da USP
O atraso de duas semanas entre ação e reação é fruto do ciclo de transmissão do vírus, que leva em conta o tempo de a pessoa se contaminar, transmitir o vírus a outra, e a nova pessoa infectada apresentar sintomas.
Nos dados do Google para o Brasil, em 10 de abril, sexta-feira santa, os brasileiros ficaram mais em casa e bateram o recorde de adesão ao isolamento. Duas semanas depois, em 26 de abril, o número diário de registros da doença também caiu, como em coreografia.
Em sua transmissão de vídeo nas redes sociais ontem, o presidente Jair Bolsonaro voltou a insinuar que a política de distanciamento social não funciona.
— Pelo que estamos vendo, até agora todo empenho para achatar a curva praticamente foi inútil — afirmou, em declaração que contraria o consenso científico.
Evidências
O economista Hakan Yilmazkuday, da Universidade Internacional da Flórida, realizou um estudo olhando para dados de mobilidade do Google em 127 países, e viu uma forte correlação.
“Os resultados sugerem que um aumento de 1% na permanência semanal em residências leva a cerca de 50% menos casos semanais de Covid-19 e cerca de 4% menos mortes pela doença”, escreveu em estudo preliminar no portal SSRN. “Um decréscimo de 1% em visitas a terminais viários leva a cerca de 22% menos casos de Covid-19 e 2% menos mortes.”
Para quase todos os parâmetros, os brasileiros parecem ter respeitado mais suas quarentenas até a última semana de março. Mas, desde então, à exceção da sexta santa, a população parece estar aos poucos comprometendo o distanciamento social. O relaxamento coincide com o período em que Bolsonaro acirrou a queda de braço com governadores pedindo retomada da economia.
O ministro da Saúde, Nelson Teich, disse ontem que a diretriz do governo de flexibilizar o distanciamento social no país está pronta. Ele afirmou temer, no entanto, que ela seja alvo de “polarização” e transformada em “ferramenta da discórdia”. Mas reconheceu que há risco de a pandemia se agravar:
— Em relação a um possível número de mortes, hoje a gente está perto de 500 mortes, 400. O número de mil, se estivermos num movimento, num crescimento significativo da pandemia, é um número que é possível acontecer.
O estatístico Benilton Carvalho, da Unicamp, que estuda a dinâmica da Covid-19 no Brasil, enxerga tendência de reversão no comportamento do brasileiro. Apesar de uma boa adesão ao isolamento social até o começo de abril em parâmetros como mobilidade e frequência a lojas e parques, desde o final de março a visita a familiares está aumentando. Por isso, nas últimas semanas, índices de contágio podem ter sido impulsionados dentro de casa.
Transmissão doméstica
— Muitas vezes olhamos para o núcleo familiar e pensamos que estamos protegidos ali, e ignoramos que alguém pode estar manifestando sintomas relacionados à Covid — afirma Carvalho. — As visitas domiciliares, na verdade, são o primeiro estágio. Aos poucos, a população pode desistir do recolhimento e reconquistar o espaço público.
Algumas projeções traçadas por especialistas indicam que o pico da pandemia do coronavírus no Brasil pode ocorrer na segunda quinzena de maio. Segundo Carvalho, muitas pessoas que morrerão neste período começaram a ser infectadas já na semana passada.
Flávio Guimarães da Fonseca, virologista da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), defende a análise que correlaciona medidas de isolamento e desaceleração da epidemia:
— Foi comprovado no mundo inteiro que o distanciamento social é absolutamente necessário. Qualquer sociedade que adotar uma flexibilização precisará pagar um preço que pode ser alto demais.
Fonseca reconhece que as pessoas estão “saturadas” de ficar em casa e que há relatos sobre o aumento de casos sobre doenças associadas à depressão.
— Quando alguém pergunta se pode visitar a mãe, digo que tecnicamente não é recomendável, e que não devemos sair do isolamento. Mas não é esta a resposta que as pessoas querem ouvir — afirma o pesquisador. — Cabe às autoridades balizar a voz dos cientistas e mostrar a importância da adesão ao isolamento social, mas a população tem recebido sinais muito confusos do governo. O coronavírus não pode ser politizado. (Agência O Globo)