O candidato a prefeito de Goiânia que colocar Segurança como pauta central no seu programa de governo, para agradar os eleitores desesperançados, vai tentar enganar não a si, mas à sociedade. Esta é a tese do editorial publicado nesta semana pelo Jornal Opção, num momento em que três políticos ligados às polícias – Major Araújo (PRP, vice de Iris), Adriana Accorsi (PT) e Delegado Waldir (PR) – participam das eleições para prefeitura da Capital.
O editorial diz que Segurança, como pauta monotemática-salvadora, está sendo utilizada como engana-trouxas, o que os eleitores não são nem podem ser. Como pauta subsidiária sim, merece debate apoio, mas não como pauta central.
“As prefeituras, mesmo as mais ricas, como a de Goiânia, não têm verbas orçamentárias para combater a violência com programas de amplo espectro. Se retirar recursos orçamentários, para melhorar a segurança pública em alta escala, não sobrarão recursos para a saúde, para a educação, para o trânsito. Sem contar que, se fizer isto, poderá enfrentar ações judiciais promovidas pelo Ministério Público, sobretudo se outras áreas do setor público forem negligenciadas”, diz o texto.
Confira na íntegra:
É falsa a ideia de que prefeito pode resolver crise da segurança pública
O Brasil é o país das ideias fora do lugar. No século 19, numa contradição evidente, políticos-fazendeiros falavam em liberalismo e eram proprietários de escravos. O liberalismo chegou ao Brasil, portanto, como uma ideia fora do lugar. Ao mesmo tempo trata-se da nação das ideias mágicas, das soluções miraculosas. No lugar de se criar instituições sólidas, que enquadrem todos — o que consolida comportamentos civilizados, regras institucionais acatadas e respeitadas por todos —, a sociedade costuma produzir caudilhos e líderes populistas. Pensando na própria eleição, na do momento e na próxima, tais políticos desenvolvem a tese de que são espécies de Messias, de salvadores da pátria e dos homens. Com uma canetada, após a assinatura de um ou mais decretos, resolveriam os principais problemas dos indivíduos. O mais incrível não é que existam tais simulacros de líderes, e sim que as pessoas, inclusive as saudáveis e, até, inteligentes, acreditem no que dizem, mesmo quando as ideias, de tão estapafúrdias, nem podem ser chamadas de ideias. São, diria o bardo britânico Shakespeare, palavras, palavras, palavras. Esmiuçadas ou desnudadas, nada dizem, nada propõem. No geral, são ideias simples, fáceis de assimilar e, daí, de serem repetidas em excesso, até que, mesmo sendo artifícios do falso, se tornem verdadeiras. Nada mais verdadeiro do que um pressuposto repetido intensamente até que se torne consenso. O falso, quando se torna verdadeiro, uma ideia de todos, é mais forte que a verdade — porque esta é, por vezes, desagradável e, até, dolorosa.
No momento, por causa das eleições para prefeito e vereador, assiste-se àquilo que o economista e filósofo Eduardo Giannetti, autor do magnífico “Trópicos Utópicos — Uma Perspectiva Brasileira da Crise Civilizatória”, nomina de autoengano. O pior da sociedade civilizada é quando o indivíduo — quiçá não se aceitando como cidadão, como ser coletivo —, mesmo sabendo avaliar e julgar os fatos sociais, se ilude com ideias redutoras e salvadoras. Observe-se o uso do “se”. Parte-se do princípio de que, na realidade, ninguém ilude ninguém, exceto crianças, e as pessoas é que, por um motivo ou outro, se deixam iludir. Às vezes, talvez muitas vezes, por não examinar de maneira adequada aquilo que está sendo “vendido” como uma ideia que pode, em questão de dias ou meses, resolver problemas graves da sociedade, se enganam, ou se deixam ser enganadas, de maneira irreversível.
Há políticos, notadamente os populistas — que, na prática, são figuras patriarcais, pais autoritários, temidos e, não raro, adorados —, que produzem música para os ouvidos dos incautos e, mesmo, dos cautos. Há momentos em que, quando falam, fica-se com a impressão de que os ouvidos das pessoas estão preparados para comprar suas ideias de uma sociedade perfeita na qual, com eles no poder, tudo funcionará. Até a corrupção vai acabar. É assim que o mundo funciona: com as pessoas se iludindo, em busca de Shangri-la. O comunismo convenceu tantas pessoas, e pessoas de bem, porque disse àqueles que estavam descrentes em medidas mitigadoras, em mudanças graduais — o que é típico da democracia, que é sempre demorada, porque respeita o ritmo de todos —, e àqueles que não acreditam mais nas religiões, as que prometiam o paraíso pós-morte, que é possível o Céu na Terra. Aqui e agora.
Em 1989, na disputa entre Fernando Collor e Luiz Inácio Lula da Silva, havia políticos moderados, como Mário Covas, Ulysses Guimarães e Aureliano Chaves, mas foram desconsiderados pelos eleitores. Por quê? Há várias explicações e a que se apresentará aqui é heterodoxa, ou menos ortodoxa. Collor e Lula eram os postulantes mais radicais, à direita e à esquerda, e por isso foram examinados com mais atenção. Eles prometiam algum tipo de salvação, e imediata, para os brasileiros. Soluções rápidas, que aparentemente resolvam tudo, é o que se quer. O Brasil, com um ou com outro, seria diferente. O resultado é que os eleitores mal examinaram as ideias de Covas e Ulysses e mesmo as de Leonel Brizola (então, quem sabe, um Lula mais moderado, depois de seu périplo pela Europa e Estados Unidos). Ficaram com aqueles que prometiam mudanças estruturais, radicalizadas, e não com os que sabiam que a sociedade segue adiante pela evolução e raramente pela revolução (esta, que devora seus próprios filhos, acaba sendo um retrocesso). Collor e Lula, com ideias “excessivas”, chamarizes pelo, digamos, escândalo, foram ao segundo turno e ganhou aquele que se apresentou como o Messias que, apesar de “modernizador”, era menos assustador para todos — e não apenas para as elites. Collor, o homem da mudança, o político que rompia com tudo e todos, na aparência mas não na essência, agradou do homem da rua ao homem do gabinete. A publicidade de um político “fala” para a média da sociedade, porque a média, espera-se, é praticamente o sentimento geral, não a exceção.
Segurança
No momento, nas ruas e nos gabinetes políticos, ouve-se um discurso que, embora primário, tornou-se consensual: Goiânia precisa discutir, na eleição para prefeito deste ano, a questão da segurança pública. Certo, deve discutir, pois o tema interessa à sociedade — ainda que interesse menos do que saúde e, embora as pesquisas não registrem com precisão (e é preciso entender que as perguntas às vezes são mais relevantes do que as respostas), emprego (tanto a falta de emprego quanto a qualificação para melhorar os ganhos salariais).
Por que o tema “segurança pública” quase domina o debate político? Primeiro, porque os políticos, os que disputam eleição para prefeito, sabem que é um assunto fácil de chamar a atenção dos eleitores. Segundo, porque, obviamente, a violência é um fato da sociedade e uma ameaça a todos; portanto, é um assunto do tipo consensual. Terceiro, e isto é grave, porque os candidatos a prefeito sabem que a população, cansada da violência e, sobretudo, da impunidade dos criminosos, querem ouvir um discurso mais radicalizado, próximo do justiçamento. É como se políticos de direita, como o deputado federal Waldir Delegado Soares, tivessem se tornado jacobinos numa época em tese sem espaço para guilhotinadores.
Medidas duras contra criminosos, começando com penas de prisão longas — e que sejam de fato cumpridas —, é o que todos querem. Mas o que um prefeito pode realmente fazer, num país como o Brasil, no qual o raio de ação de um gestor municipal é diferente, até muito diferente, do que se pratica nos Estados Unidos? Pode-se dizer que um deputado federal, que pode apresentar projetos para fortalecer a segurança pública — por exemplo, para reduzir a maioridade penal —, tem mais condições de combater a violência do que um prefeito, que, a rigor, precisa atuar sobretudo em outras áreas.
O que se está dizendo não é que um prefeito não pode colaborar para combater a violência e, portanto, melhorar a segurança da cidade que administra. O que se está dizendo, isto sim, é que a principal pauta de um prefeito, seja de Goiânia ou de outro município, não é a segurança pública (e, afinal, Goiânia não é México ou Síria). Aquele que colocar a pauta da segurança como central no seu programa de governo, para agradar os eleitores desesperançados, estará tentando enganar, não a si, e sim à sociedade. As prefeituras, mesmo as mais ricas, como a de Goiânia, não têm verbas orçamentárias para combater a violência com programas de amplo espectro. Se retirar recursos orçamentários, para melhorar a segurança pública em alta escala, não sobrarão recursos para a saúde, para a educação, para o trânsito. Sem contar que, se fizer isto, poderá enfrentar ações judiciais promovidas pelo Ministério Público, sobretudo se outras áreas do setor público forem negligenciadas.
O que se está dizendo é que a segurança pública, como pauta monotemática-salvadora, está sendo utilizada como engana-trouxas, o que os eleitores não são nem podem ser. Como pauta subsidiária, sim, merece debate e apoio, mas não como pauta central. Por que não pensar num projeto para revolucionar a educação de Goiânia? Já se pensou em criar uma Olimpíada de Matemática e uma Olimpíada da Língua Portuguesa, com os vitoriosos recebendo patrocínio para continuar os estudos? Por que não criar salários diferenciados para professores, com os mais produtivos ganhando mais? Por que não criar verdadeiras escolas de tempo integral? Por que não iluminar as ruas da cidade de maneira adequada, com o objetivo de facilitar o tráfego das pessoas e criar mais segurança para elas? Por que não propor um projeto para tornar a saúde pública municipal mais eficiente? Por que não se apresentar um projeto moderno para o transporte coletivo e para reduzir o descongestionamento do trânsito? Por que não se pensar num projeto para reciclar o lixo da cidade e torná-lo, por assim dizer, produtivo? Por que não se uniformizar as calçadas e não se construir pontos de ônibus decentes, que realmente protejam do sol e da chuva? Sabe por quê alguns políticos preferem o debate da segurança pública? Porque, em tese, rende mais votos. De fato, com os signos trocados, como pauta falsa sob máscara de verdadeira, rende mais. Mas, se um ou mais candidatos divulgarem um projeto alternativo, mostrando que a crise da segurança não será resolvida por um prefeito, é provável que o eleitorado mude de opinião e, quem sabe, até de candidato.
Quem verifica o espectro político de Goiânia imagina que a disputa eleitoral deste ano é mais um concurso para policial do que uma disputa para prefeito. Iris Rezende (PMDB), apontado como favorito pelas pesquisas de intenção de voto, tem como vice um político que, militar aposentado, adotou sua patente como prenome, Major Araújo (sua proposta de bolsa-arma é uma afronta à inteligência dos eleitores). Francisco Júnior (PSD) banca como vice o coronel Pacheco. O PR e o PT lançaram como postulantes a prefeito delegados de polícia, Waldir Soares e Adriana Accorsi. Nada contra policiais na política, mas a policialização da política, como se os problemas das cidades fossem (exclusivamente) policiais, não é benfazeja para a sociedade. Observe-se que os discursos atuais, de vários candidatos, contribuem, de maneira acentuada, para criar uma sensação de insegurança na sociedade. Não se está sugerindo que os eleitores condenem este ou aquele candidato, e sim que reflitam sobre o significado real de suas propostas ou, no singular, proposta. Por fim, segurança pública é um assunto sério, tão sério que está acima de questões meramente eleitorais…